sábado, 24 de abril de 2021

Porque a Rússia gerou tantos escritores fundamentais no século 19 !?

Folha de São Paulo

Entenda por que a Rússia gerou tantos escritores fundamentais no século 19

'Como Ler os Russos' destila a cultura que produziu autores como Tolstói, Dostoiévski, Tchékhov e Púchkin

Por Walter Porto

SÃO PAULO

No ensaio “Tolstói ou Dostoiévski”, o crítico francês George Steiner comenta o que chama de “anni mirabilis da ficção russa”. Foram anos de um “suprimento de genialidade” que pode ser comparado “aos períodos dourados de criatividade na Atenas de Péricles e na Inglaterra elisabetana”. “Estão entre os melhores momentos do espírito humano.”

Qualquer pessoa com algum conhecimento de literatura entende mais ou menos do que ele está falando. O século que começou com Púchkin e terminou com Tchékhov, para usar a construção de Irineu Franco Perpetuo, concentrou ainda autores como Gógol e Turguêniev, além dos pais de “Anna Kariênina” e dos “Irmãos Karamázov”.

Perpetuo, que está publicando o guia “Como Ler os Russos”, tem algumas hipóteses para o que provocou um clarão literário tão esplendoroso.

Primeiro, a guinada ocidentalizante tardia da Rússia, que torna os pais fundadores de sua literatura mais próximos de nós, em termos sociais e temporais, que outros oráculos como Shakespeare e Cervantes. “Parece que a literatura russa chega atrasada e resolve tirar o atraso muito rápido, queimando etapas e ditando normas.”

A aproximação da Rússia com a cultura europeia veio com Pedro, o Grande, na virada para o século 18, e se aprofundou no reinado de Catarina, logo depois. Como descreve o crítico, o país engole com voracidade a cultura francesa e regurgita depois uma literatura “que não tem nada a ver com a francesa, numa síntese única”.

O que ocorre então, no sentido contrário, é que a literatura russa passa a ser fonte de inspiração para a Europa, nos fins do século 19. O nível de contágio entre a intelectualidade europeia e a brasileira, nessa época, é algo que começa a explicar a entrada dos russos por aqui, uma invasão que Perpetuo aponta

O crítico e tradutor abre esta obra que chega às livrarias agora afirmando que “se é possível escrever no Brasil um livro chamado ‘Como Ler os Russos’, é porque a questão ‘por que ler os russos?’ parece respondida de antemão”.

Afinal, a literatura de lá se faz tão presente entre nós, e há tanto tempo, que “não chegamos a ponderar no que há de espantoso em sua inserção numa sociedade em que a parcela de imigrantes russos é tão escassa”.

Durante a entrevista, Perpetuo ensaia algumas explicações sobre aspectos que aproximam os dois países, como as proporções continentais e a geopolítica periférica, mas sempre acaba retornando para a força extraordinária da expressão daqueles autores.

O que leva a um outro fator de distinção. “A literatura na Rússia sempre foi mais que literatura. O escritor era visto como uma espécie de profeta.” Ou, voltando a citar George Steiner, “Tolstói e Dostoiévski não são apenas lidos, eles são acreditados”.

Na Rússia não havia nem resquício de um sistema democrático, lembra o crítico brasileiro, o que transformou a expressão literária num dos meios fundamentais de circular ideias políticas —já que não havia púlpitos de partidos durante todo o século 19, sob os desmandos dos czares.

Por isso também o conflito com a censura e a perseguição sempre foi intrínseco à cena intelectual russa —são inúmeras as histórias de escritores exilados, encarcerados, fuzilados. Como disse o crítico Vladislav Khodassévitch, que se radicou em Berlim, “em nenhum lugar fora da Rússia as pessoas foram tão longe, por quaisquer meios possíveis, para destruir seus escritores”.

Ou, nas palavras famosas do poeta Óssip Mandelstam, morto pelo regime stalinista —"em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso”.

“Como Ler os Russos” avança durante todo o período soviético, passando pelo degelo que revelou o “Arquipélago Gulag” de Aleksandr Soljenítsyn, se estica até autores desterrados como Vladimir Nabókov e Joseph Brodsky e chega até os contemporâneos, forjando um panorama robusto dos nomes e correntes artísticas indispensáveis ao leitor.

Ao longo do livro, as citações tiradas das dezenas de obras literárias analisadas são raríssimas, mas Perpetuo mobiliza longos trechos da melhor fortuna crítica que se produziu sobre a Rússia.

O mais frequente é Boris Schnaiderman, um dos principais fios condutores da entrada da língua russa no Brasil. “Fiz questão de trazer o pensamento crítico brasileiro”, afirma Perpetuo. “É um livro de um brasileiro para brasileiros, levando em conta o contexto do país.”

Contexto, aliás, mais pujante do que nunca, com diversas editoras se animando em escavar clássicos da terra de Putin. Já faz duas décadas, diz o autor, que a tradução direta do russo se tornou regra por aqui, onde antes vicejavam traduções mediadas pelo francês.

Assinalando o marco inicial no “Crime e Castigo” que Paulo Bezerra transpôs em 2001 para a editora 34, ele diz que hoje recebe propostas até para traduções diretas de livros científicos.

Vale comentar que Perpetuo traz o olhar externo do estudioso, mas também o interno do tradutor experimentado. Suas versões do clássico “Anna Kariênina” e do contemporâneo “Meninas”, de Liudmila Ulítskaia, chegam no mês que vem pela 34, que já tem na gaveta também sua tradução inédita de “Guerra e Paz”.

A crítica chama de “febre de eslavismo” a reação entusiasmada dos leitores brasileiros ao intenso desembarque de obras russas no país, nos anos 1930. Ela nunca deu sinais de arrefecer. E, tendo contaminado gente como Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues, é seguro dizer que já está devidamente incorporada aos nossos genes