sábado, 18 de outubro de 2008

Pedro Cardoso e a nudez no cinema

Por Alexandre Carvalho

Leio na Folha que Pedro Cardoso fez um longo discurso, no Festival do Rio, contra a nudez na produção cinematográfica e televisiva brasileira. Aponta pornografia no recurso ao nu, diz que, despido de suas vestes, o ator perde o personagem para ser ele mesmo, o ator: “Diante da irredutível realidade da nudez de seu corpo, o ator não consegue produzir a ilusão do personagem”. Pedro ainda vê excesso de “roupas sensuais, ou diálogos maliciosos, ou beijos intermináveis” na TV e no cinema. Tudo serviria para alimentar o marketing “das empresas que exploram a comunicação em massa” e atender ao “voyeurismo e disfunção sexual de diretores e roteiristas”.

Após o discurso de Pedro, a atriz Cláudia Abreu foi ao microfone para endossar tudo o que havia sido dito. “Passei por uma situação recentemente. Ele está completamente certo”.

Ora, a situação recente (a única?) em que Cláudia expôs sua nudez foi no filme Os Desafinados, de Walter Lima Jr. Seria o diretor um dos tarados apontados por Pedro Cardoso?

Não creio. Embora Os Desafinados não seja o momento mais inspirado de Lima Jr. (autor do belíssimo A Ostra e O Vento), a nudez de Cláudia não tem nada de gratuita e se impõe como um momento capital do filme. É quando sua personagem se afirma como mulher moderna e independente, antes que a liberdade sexual dos anos 60 fosse uma realidade, e é também uma resposta provocativa a seu par romântico, interpretado por Rodrigo Santoro, que a poderia ter tomado por uma amante (ele é casado com outra) obediente e sem riscos. A mulher dos anos 60 surge em contraponto com a puritana dos 50.

Estranho que uma atriz de carreira consolidada na TV, uma das mais populares do Brasil, pudesse se sentir constrangida ao que quer que fosse, pela chance de um papel num filme.

Há nudez gratuita em filmes? Claro que há, como também há piadas sem graça, diálogos gratuitos, violência gratuita, drama gratuito... Mas não se pode generalizar.

A nudez predominante em Nome Próprio, de Murilo Salles, é toda a transparência da personagem Camila, aspirante a escritora que sente o mundo à flor da pele, com todos os seus defeitos, do mundo e dela. O fato de estar nua não encolhe a personagem; ao contrário, reforça suas idiossincrasias.

Em seu discurso, Pedro Cardoso citou dois filmes de François Truffaut, O Último Metrô e A Mulher do Lado, como exemplos de “narrativa da intimidade de personagens sem haver exposição da intimidade dos atores”. Talvez Pedro não tenha assistido aos seios nus de Catherine Deneuve em A Sereia do Mississipi, do mesmo diretor. Que eu saiba, Deneuve não se revoltou contra a situação; pelo contrário, foi amiga (e musa) de Truffaut até o fim da vida do cineasta. E, por maior que seja minha capacidade de fantasiar, não consigo aproximar Truffaut da idéia de um pornógrafo disfarçado.

Um filme tem a intenção, embora nem sempre, de representar a realidade. Pois bem, o universo adulto de que tratam muitas tramas envolve amor, paixão (entre os temas mais explorados do cinema), sexo, e é natural que a representação de pessoas que se amam, se apaixonam e fazem sexo (afinal, é o que adultos que se querem fazem) inclua beijos intermináveis, diálogos maliciosos, roupas sensuais e personagens que estão nus; o que, dependendo da estética proposta por cada obra, pode ser apresentado de forma mais ou menos explícita.

O Amante de Lady Chatterley, da diretora Pascale Ferran (tarada também?), tem nudez à beça, e a forma natural e delicada como se dá a abordagem da relação entre os amantes é dos momentos mais belos do cinema recente. Basta lembrarmos a cena em que o guarda-caças Parkin coloca flores no corpo de Constance, interpretada por Marina Hands. Considero improvável que Marina tenha se sentido violentada pela nudez exposta no filme.

No também recente Senhores do Crime, de David Cronenberg, foi o próprio ator Viggo Mortensen quem sugeriu que seu personagem estivesse nu em uma cena de luta corporal numa sauna. Poucas vezes, uma luta foi tão física e realista no cinema. Se Viggo tem algum passado vinculado à pornografia, eu desconheço.

Seria ingenuidade imaginar que não existe pressão de produtores e diretores, ávidos por bilheteria ou audiência, principalmente sobre atores e atrizes iniciantes, que têm pouco poder de argumentação e se colocam dispostos a tudo por um lugar ao sol. Em outros casos, cabe ao ator aceitar ou recusar um roteiro em que haja cenas de nudez, dependendo do quanto consegue ou quer se expor em um trabalho, e do que espera das intenções da produção. Natalie Portman, que já negociou a não exposição de sua nudez em Closer, mudou de idéia em outra ocasião, quando apareceu nua no curta Hotel Chevalier, de Wes Anderson. E Natalie Portman é atriz de primeira grandeza no cinema internacional, certamente não foi pressionada a nada. Muito menos por Wes Anderson.

Engraçado que nenhum ator se revolte contra segurar um revólver num filme ou contra a falta de inteligência, aparentemente proposital, predominante na TV aberta do Brasil. Afinal, a garantia da carteira assinada por uma “empresa que explora a comunicação em massa”, como é o caso da emissora de TV em que Pedro Cardoso trabalha, não recomenda que se aponte o dedo contra o baixo nível da dramaturgia rasa e distante da realidade que se vê em horários que já não são nobres.

Mais fácil bater nos cineastas, esses tarados.


Comentário:
Irretocável este texto. Especialmente por chamar atenção para esta infantil mania de demonizar certos aspectos seletivamente (quase sempre moralistas), em detrimento dos verdadeiros absurdos como a violência, e outros baixos instintos estimulados e servidos ao público. Portanto abaixo o MORALISMO SELETIVO.

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