quarta-feira, 23 de julho de 2014

Para o meu Pai.

Meu Pai se foi hoje e nem deu tempo de despedir.

Pai,
De tanto conviver com crianças e adolescentes nos últimos dias em que o seu neto Gabriel esteve aqui, não pude deixar de lembrar muitas vezes do senhor e também de comparar o modo de ser dos garotos de 14 anos de hoje e o garoto de 14 que fui; Aos  quatorze anos eu dirigia sob suas ordens, um trator Massey Ferguson 65x, uma caminhonete C14 e uma Rural, ajudando nas plantações de arroz, além de estudar de manhã e desempenhar varias outras tarefas como, cuidar da Granja, triturar milho, colher ovos, etc e etc. Não sei se o senhor se lembra mas aos 10 anos de idade eu tinha a incumbência de cuidar dos irmãos mais novos, preparando mamadeira, trocando etc, enquanto o senhor ia com a mamãe aos ensaios do coral da igreja. Pois bem, esta semana,  aqui no litoral, pedi um dos garotos pra ir ao mercadinho em frente comprar presunto enquanto eu preparava o café da manhã para eles mesmos e ouvi uma inacreditável e interminável arenga para não ir por pura preguiça. Fiquei Irado e lembrei que quando o senhor me mandava (uma única vez) fazer algo como levar uma marmita de comida a 3 kilometros de distância para um trabalhador na plantação, ou comprar gasolina para o moinho, eu mais que depressa tentava ser o mais eficaz e eficiente possível para marcar pontos e fincar o pé no mundo adulto conquistando respeitabilidade. Passo seguinte, adquiri o direito de empunhar aquela velha espingarda 36 para "espantar" as capivaras que atacavam o arrozal e me sentia o máximo! (risos).
Hoje se pedimos a um guri para ir na esquina buscar um molho de tomate numa emergência, ele desdenha da gente e nem tira o olho do videogame para responder e os pais dizem que é “assim mesmo” vivemos em “outros tempos...” Então eu acho que embora o senhor tenha sido muitas vezes excessivamente violento em algumas situações, o balanço geral foi positivo por me ensinar a ter uma rica “noção de ser e estar no mundo” que considero um legado fenomenal e por isso tenho tentado esquecer a parte bizarro-religiosa e violenta.
Daí que dois dias atrás quando voltei da praia com os imberbes, liguei pra minha mãe e ela disse que o senhor estava ótimo e com certa lucidez e então eu pedi a ela que dissesse que eu não guardava mais tantas mágoas (por ter sido excessivamente severo comigo na 1ª infância) porque entendi que em contrapartida havia me passado preciosos conceitos e ensinamentos que fizeram de mim uma pessoa razoável bla,bla,bla..., entendendo que educar e preparar uma criança para a vida, é uma tarefa das mais desgastantes. Agora acabo de saber que não deu tempo, né? Hoje de manhã o senhor teve uma piora repentina e se foi e eu fiquei com um travo amargo na boca em não ter podido dizer isso a tempo, mas eu também só fui perceber que eu não tinha mais raiva recentemente... assim como só nestes últimos tempos foi que pude saber o quanto é difícil educar uma criança e o senhor tinha sete! Enfim, estou aqui meio atarantado sem saber como ir para Jataí para reencontrar pessoas que amo e me assombrar com os demônios que me espreitam em cada esquina. Sim eles são muitos ainda. Uns travestidos de religiosidade pseudo-light, outros de bufonarias variadas e lembranças agônicas que saem do parque de jatobás à noite com suas caras medonhas vindas diretamente do passado para terrificar. Penso no senhor e imagino como poderia ter vivido mais e ter sido mais livre e feliz se não tivesse sido tão aterrorizado pelo negrume do medo do inferno e tão esmagado pelo julgo da culpa judaico-cristã, que ainda continua rondando a área, ainda que transmutada em maneirismos variados e dissimulada de moderninha-inofensiva para açambarcar novas vítimas-fieis. Agh! Vi umas fotos do senhor agora a pouco e lembrei de sua risada, do seu carinho e ternura, quando não estava tenso, irado/preocupado com a CULPA-pecado e outras sandices que lhe foram covardemente impressas na alma infantil e indefesa. Quisera eu que o senhor não tivesse repassado esta carga (calvinista) miserável também... enfim, fiquei aqui um tempo relembrando que quando pequenino e não havia TV ainda, depois do jantar o senhor ficava no alpendre me ensinando ver as estrelas e contando estórias de um tempo que chegou tão rápido que não deu nem tempo de entender o fim.
Fique bem, querido pai e me perdoe pela impulsividade e pela pressa de querer crescer e partir, mas eu tinha que fugir daquela opressão, daquelas igrejas todas e da religiosidade exarcebada e insana. Eu vivia aterrorizado pela coisa toda, mas pressentia que se subisse à tona encontraria alívio, frescor e vida. Era só isso que eu queria; me libertar daquela atmosfera escatológica. Eu era só uma criança com barba naquela madrugada em que desapareci. Só eu é que não sabia. Até hoje fico pensando no que o senhor sentiu quando acordou e viu que eu com 17 anos tinha ido embora. Desculpe, viu!? Foi mal!  E olha, eu só sobrevivi porque o senhor me preparou para a dureza. Só não preparou para as artimanhas da vida pois o senhor acreditava e me ensinou a também crer na intervenção e na proteção divina e eu demorei muito e me lasquei bastante até perceber que tratava-se de uma mera abstração delirante e comecei a me ligar que estava mesmo só num mundo cruel.
Não foi fácil me curar e libertar do ranço religioso, mas consegui grandes progressos. Não espero que compreenda tudo isso, mas gostaria que soubesse que já não tenho tanta ojeriza e raiva da bobageira toda a que fui submetido. Diria até que hoje, compreendo melhor o bizarro fenômeno religioso e suas desencadeantes, mas não tenho paciência com o circo ainda. Só falei disto  porque sei o quanto isso te infelicitou ainda que o senhor não tenha nunca sabido e talvez por isso eu já não tenha tanta raiva. Só lamento ver que tudo continua igual, quando vejo seus netos já sendo adestrados desde a tenra idade.
Olha pai, boa Viagem para onde quer que seja e eu vou tocando como der por aqui, sempre sonhando que um dia a ciência talvez vença a morte, essa intrusa desagradável e inconveniente.
Sempre que passo na rua das palmeiras em Santa Cecília ou em frente ao Mackenzie, lembro do senhor e fico pensando em porque não gostou daqui na sua juventude. Eu desde que cheguei aqui naquele libertador dezembro de 1980 adorei tudo e embora tenha estado em tantos outros lugares eu sempre volto pra cá.
Olha, dia desses vou te escrever uma carta com mais detalhes porque agora tenho que fazer as malas e ir até aí...
Saudades,

Ricardo

2 comentários:

Anônimo disse...

Grande Ricardo, grande sem literalidade obviamente, a despeito de que tenha crescido em todos os sentidos como cresceu marcantemente na erudição. Arenga, imberbes, agônicas, etc. tudo posto de forma cirúrgica num contexto que facilitou muito minha interpretação de texto que não seja técnico, me fez pela terceira semana consecutiva saudoso do Suassuna, Ubaldo, Rubem Alves... Mas agora eu tenho seu blog, e com o perdão então, você agora é livre-pensador, ficaram para trás os extremos absolutos, com suas mentiras absolutas.
Nietzsche não teve a mesma sorte (ou tempo), escrevia absolutamente no extremo, preso nos traumas imperdoáveis de sua vida pregressa enquanto elegia culpado. A boa nova do pensamento extremo é que para nenhum lado ele presta.
Getúlio... de Jataí
Permita-me compartilhar seu post para educação de meus filhos, eu prometo citar a fonte.
Para não te perder mais, pegue meus contados com o Herculano (não posso deixá-los aqui).

Indra disse...

Amei o album. Bela homenagem e belas palavras Ri...sabe? Fico feliz de saber que já não tem mais essa raiva toda guardada dentro de sí...Os nossos pais nos deram a vida, o ensinamento e passaram o que eles "achavam" era a educação para nos fazer seres do bem. Não tiveram TODA a oportunidade que nós temos, informação, livros, etc...Temos que perdoar e entender o contexto...
Um beijo!
Indra